in Jornal “Público”, por Pedro Crisóstomo
Parlamento teme atraso nos novos recursos próprios. Eurodeputado José Manuel Fernandes acusa a Comissão Europeia de estar a ferir acordo
À espera de ver até onde chegam as negociações da nova reforma fiscal mundial, a Comissão Europeia guardou na gaveta, por uns meses, a sua proposta para criar um imposto digital, deixando o Parlamento Europeu descontente com o adiamento, visto como uma clara cedência à Administração de Joe Biden e uma pedra no sapato no calendário traçado para fixar os novos recursos próprios do Orçamento da União Europeia (UE) que vão financiar os planos de recuperação.
A Comissão von der Leyen tinha-se comprometido a apresentar uma proposta legislativa sobre a tributação dos serviços digitais até 15 de Junho; depois, disse que o faria até 20 de Julho; mas acabou por não divulgar a iniciativa, remetendo o dossier para a fase final das negociações da reforma fiscal na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que gira em torno de dois pilares, a reafectação dos direitos de tributação e uma taxa efectiva de IRC a nível mundial de pelo menos 15% para as multinacionais.
O acordo prevê que os impostos nacionais sobre os serviços digitais (e outras medidas idênticas) sejameliminados para haver uma coordenação das regras a nível global — e, por isso, Bruxelas prefere esperar para revelar a sua iniciativa. Só que o Parlamento ficou surpreendido e apreensivo. Surpreendido, porque não estava à espera.
Apreensivo, porque há um acordo interinstitucional celebrado entre a Comissão, o Parlamento e o Conselho Europeu em 2020, juridicamente vinculativo, que obrigava o executivo comunitário a divulgar a proposta nesta altura do ano, para os governos deliberarem o mais tardar em Janeiro de 2022 e os recursos próprios estarem em vigor a 1 de Janeiro de 2023. E como a comissão dos orçamentos do Parlamento Europeu contava receber o projecto legislativo neste momento, para começar a preparar o seu parecer, os eurodeputados envolvidos neste dossier temem que o atraso não permita cumprir os prazos do acordo, porque o entendimento final da OCDE só deverá estar concluído em Outubro e só aí chegará a posição da Comissão, o ponto de partida.
Descontente com o adiamento, o presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli, escreveu a Ursula von der Leyen a exigir explicações. Se o adiamento de Junho para Julho era “aceitável”, um atraso de “vários meses” na questão do imposto digital põe “em causa a apresentação atempada das propostas dos recursos próprios”. É que o pacote inclui não apenas a parte da tributação dos serviços digitais (a razão da ausência da proposta), mas também outras duas outras fontes: o mecanismo de ajustamento das emissões de carbono nas fronteiras e o alargamento do sistema de comércio de licenças de emissão (conhecido por RCLE).
O primeiro pilar da reforma da OCDE prevê uma distribuição mais equitativa dos direitos de tributação, para que as maiores e mais rentáveis multinacionais paguem o IRC onde verdadeiramente desenvolvem as suas actividades (nos países onde os produtos são consumidos ou onde os serviços são vendidos, mesmo que as empresas não tenham aí uma presença física). E, tal como no segundo pilar da reforma (o patamar mínimo de IRC de 15% a nível global), essa nova forma de tributação dos lucros em função do local onde existe a actividade já deverá abranger as grandes tecnológicas, como a Google, a Apple, o Facebook, a Amazon e a Microsoft. Uma parte dos lucros será tributada pelos países onde os consumidores ou os utilizadores vivem, o que significa que os países da UE (à semelhança de outros) ganharão margem para tributar em IRC uma quota-parte dos lucros que hoje não conseguem tributar.
Mas, para já, não se sabe em concreto — e era isso que o Parlamento esperava ficar a saber agora — como é que as novas regras da OCDE, ao serem transpostas pelos 27 Estados- membros, se traduzirão num novo recurso próprio do orçamento europeu.
Presidente do PE, David Sassoli, escreveu a Ursula von der Leyen a exigir explicações. Eurodeputado José Manuel Fernandes (em baixo) critica adiamento da Comissão: é uma “má táctica e um sinal de subjugação ao interesse dos EUA”
Depois de Yellen
Para o eurodeputado do PSD José Manuel Fernandes, co-relator dos relatórios, pareceres e decisões do Parlamento relacionados com os recursos próprios, a Europa tinha vantagens em conhecer uma proposta já. Se a Comissão a apresentasse, entende, estaria a dar “uma ajuda” às negociações na OCDE, onde, diz, as discussões foram avançando graças às exigências da União Europeia, nomeadamente no digital.
“A Comissão tem obrigação de apresentar propostas. Os Estados-membros ficavam com elas em cima da mesa e até as podiam utilizar como forma de negociação no âmbito da OCDE”, considera. Aqui, 132 das 139 jurisdições envolvidas nas negociações já subscreveram o acordo preliminar (130 assinaram o texto no início e, entretanto, juntaram-se mais duas jurisdições). E mesmo com as reticências da Irlanda, da Estónia e da Hungria — os três Estados-membros que não subscreveram o entendimento inicial da OCDE —, as negociações avançam. Foi já depois da visita da secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, a Bruxelas, no seguimento da reunião dos ministros das Finanças do G20 a 9 e 10 de Julho em Veneza, que a Comissão veio dizer que não iria apresentar a sua proposta do imposto digital antes das férias de Verão. Algo que está a ser encarado no Parlamento como uma cedência, tanto que, nos Estados Unidos, o adiamento foi visto como uma vitória da nova Administração. Por outro lado, em Bruxelas há a percepção de que os EUA continuam a olhar para a iniciativa europeia como um imposto feito à medida das grandes tecnológicas norte-americanas, sobretudo por impulso da França, ainda que a ideia fosse criar um enquadramento para a tributação dos serviços digitais capaz de abranger não apenas os gigantes GAFA (de Google, Apple, Facebook e Amazon), mas também empresas de outra dimensão que tiram igualmente