Expresso, 21 de abril de 2022
JOANA NUNES MATEUS
ECONOMIA | FUNDOS EUROPEUS
José Manuel Fernandes Eurodeputado do PSD na Comissão dos Orçamentos
“GOVERNO SÓ NÃO AJUDA AS EMPRESAS SE NÃO QUISER”
José Manuel Fernandes é coordenador do maior grupo político — o Partido Popular Europeu — na comissão dos Orçamentos do Parlamento Europeu (PE) e considerado um dos mais influentes eurodeputados da União Europeia (UE). Em entrevista ao Expresso, o social-democrata alerta que a escalada dos preços e a guerra obrigarão a Europa a reestruturar o Quadro Financeiro Plurianual (QFP) 2021-27 e o país a rever os projetos financiados pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) ou pelo Portugal 2030. Para salvar as empresas, propõe a rápida mobilização dos empréstimos da ‘bazuca’ europeia para o InvestEU, o programa que sucedeu ao Plano Juncker na multiplicação dos fundos europeus em instrumentos financeiros: “Por cada €1000 milhões que Portugal colocar como garantia no InvestEU, pode capitalizar as empresas em mais de €7 mil milhões.”´
Em 2020, a UE aprovou o maior orçamento de sempre. Mais de €2 mil milhões para aplicar esta década: €1200 milhões do QFP 2021-27 e €800 mil milhões da ‘bazuca’ NextGenerationEU para recuperarmos da crise pandémica. Deve o Governo lutar por outra ‘bazuca’ europeia para enfrentar os impactos da escalada dos preços e da guerra?
Uma segunda ‘bazuca’ implicaria uma unanimidade na UE que não sabemos se é possível ou quantos anos demora. Ficaríamos reféns de um qualquer Estado-membro. Para a UE se poder endividar e financiar a primeira ‘bazuca’ foi preciso alterar a Decisão dos Recursos Próprios. Tal exigiu unanimidade no Conselho e a ratificação por todos os Parlamentos nacionais, alguns por maioria de dois terços. Há mais de €200 mil milhões ainda disponíveis nesta ‘bazuca’. Empréstimos que os Estados-membros decidiram não utilizar do Mecanismo de Recuperação. O PRR português, por exemplo, tem €2,7 mil milhões de empréstimos, mas podia ter utilizado €14,2 mil milhões.
Esses empréstimos podem ser utilizados para apoiar as empresas agora fustigadas pela guerra?
Ainda não. Mas basta alterar umas palavras no regulamento do programa InvestEU para podermos criar instrumentos de capitalização para essas empresas. Em vez de ser só para pequenas e médias empresas afetadas pela Covid-19, alarga-se o InvestEU às empresas atingidas pela escalada dos preços e pela guerra. E altera-se o regulamento do Mecanismo de Recuperação para os Estados-membros utilizarem esses empréstimos como garantia no InvestEU. São alterações cirúrgicas. Não precisam de unanimidade, basta maioria no Conselho. Num mês, resolve-se.
O InvestEU permite multiplicar os empréstimos da ‘bazuca’ em quantos apoios às empresas?
Por cada €1000 milhões que Portugal colocar como garantia no InvestEU, pode capitalizar as empresas em mais de €7 mil milhões. E até há dúvidas se a garantia utilizada no InvestEU contaria ou não para o défice português porque ficaria registada no orçamento da UE e não no orçamento nacional. O Banco de Fomento não tem músculo suficiente e o Governo pode e deve ajudar as empresas já. Só não ajuda as empresas se não quiser. Basta defender junto do Conselho a alteração destes regulamentos. Se fosse para financiar o Estado, estou certo de que António Costa já o teria proposto.
A escalada dos preços também já está a pressionar as obras públicas do PRR. Como vai o país cumprir as metas?
O PRR já estava desatualizado antes da guerra por causa do disparo dos preços da construção. Mas pode agora ser alterado devido a esta nova realidade.
O PRR inscreveu €1211 milhões da ‘bazuca’ para disponibilizar casas a, pelo menos, 26 mil famílias até 2026. Serão os contribuintes chamados a pagar as casas que faltarem para cumprir esta meta acordada com Bruxelas?
O dinheiro da ‘bazuca’ não será suficiente para cumprir todos os investimentos previstos no PRR, designadamente essa emblemática meta das 26 mil casas. O governo tem várias opções. Ou mete o dinheiro que falta para concretizar todos os investimentos ou revê as metas em baixa e não constrói tantas casas. Pode diminuir a taxa de cofinanciamento de 100% para as obras públicas, assumindo o Orçamento do Estado a parte que não estava prevista. Por más razões — por ter crescido menos que os parceiros europeus — Portugal ainda vai receber um reforço de €1600 milhões da ‘bazuca’ em junho. Pode aplicá-lo nestas obras.
Até agora, o que o Governo anunciou foi o reforço das verbas das Agendas Mobilizadoras de Inovação Empresarial…
Isso só confirma que as empresas tinham dinheiro a menos no PRR. E que o Governo deve estar a preparar uma revisão/atualização dos investimentos a realizar no PRR. O próprio Portugal 2030 também poderá estar já desatualizado face ao momento que vivemos. O grande erro foi não se ter negociado o PRR e o Portugal 2030 em conjunto. Mas ainda pode ser feita alguma coordenação. Por exemplo, o PRR fazer só 20 mil casas e o Portugal 2030 as restantes.
E quanto ao orçamento europeu? O QFP 2021-27 tem margem para aguentar os impactos desta guerra, os milhões de refugiados, etc.?
Não tem flexibilidade suficiente para responder a mais uma crise que toca a todos os Estados-membros. Ninguém estava à espera de uma guerra. O orçamento europeu já está a rebentar pelas costuras e é preciso reforçar os montantes de várias rubricas. É preciso reforçá-lo, mas também reestruturá-lo para agirmos rapidamente perante situações imprevistas, calamidades, como esta guerra ou outra pandemia. Não podemos estar sempre à procura de unanimidade nos 27 para acudir a problemas imediatos.
Dinheiro da ‘bazuca’ não será suficiente para cumprir todos os investimentos previstos no PRR.
O PT2030 também poderá estar já desatualizado e precisa de mais receitas?
Já precisava para pagar a dívida contraída para as subvenções da ‘bazuca’ europeia. A partir de 2028, inclusive, o custo desta dívida subirá para uma média de €15 mil milhões por ano até 2058, o equivalente a 10% do atual orçamento europeu anual. É um impacto brutal! Portugal arrisca perder 10% dos fundos europeus no QFP pós-2027 caso a UE não se entenda quanto a novos recursos próprios.
O Acordo Interinstitucional de 2020 entre PE, Conselho e Comissão Europeia previa taxar os gigantes digitais, as multinacionais, as transações financeiras… Chegarão os 27 a acordo?
Quem não paga deve pagar. Todos os anos se perdem milhares de milhões de euros em fraude e elisão fiscal. Se as multinacionais são quem mais partido tira do mercado interno, então devem contribuir mais. Para evitar cortes no QFP pós-2027, há que chegar a acordo quanto a uma taxa sobre transações financeiras.
Também estão previstas mais receitas sobre as emissões de carbono. E o PE defende o embargo total às importações de energia russa. Esta subida dos preços é só transitória ou vamos ter de nos habituar a pagar mais no futuro?
Os governos esconderam que, mesmo sem guerra, os preços da energia iriam sempre aumentar. Reduzir as emissões em 55% até 2030 e atingir a neutralidade carbónica em 2050 terá consequências. Aos preços — que já estavam a aumentar — a guerra veio acrescentar a instabilidade e a enorme dependência energética da UE face à Rússia. Todos sabiam que Putin era um ditador, mas não se atuou de forma preventiva para assegurar o abastecimento energético da UE. Fomos gulosos: porque a energia russa era mais barata — ainda que fosse perigoso — deixa lá aproveitar…
A fatura chegou agora?
Estamos numa situação absolutamente dramática porque somos o maior financiador de Putin. Compramos todos os dias €1000 milhões em energia russa, que agora custa 3,5 vezes mais. Porque é que Putin não corta o gás à Europa? Porque está a lucrar altamente! Ainda que se percebam as graves consequências económicas para a Alemanha, a UE não pode continuar nesta contradição de financiar as armas russas e querer acabar a guerra na Ucrânia.